Estevão C. de Rezende Martins (do site da UnB)
Há 20 anos, o Brasil encontrava-se ainda numa fase de acerto de contas com seu passado imediato, de restabelecimento das práticas democráticas. Em março de 1985 começou um período de transição democrática, até outubro de 1988, quando foi promulgada a nova Constituição federal. O reordenamento político do Brasil olhava com ansiedade para o calendário eleitoral, pois em 1989, após 29 anos de jejum político, a sociedade iria poder eleger, pelo voto direto, o presidente da República. O espaço público estava dominado mais pela teimosa crise econômica e pelas eleições do que pelos desdobramentos da recente Constituição ou do contexto internacional. Políticos, acadêmicos, jornalistas, comentaristas e empresários tinham sua atenção fixada nessa agenda interna.
A cena internacional parecia cristalizada no rema-rema tradicional da Guerra Fria. Os sinais de que o cenário internacional se modificava foram pouco ou mal percebidos: a queda de Alfredo Stroessner no Paraguai, a saída dos comunistas do governo húngaro, a volta de Solidarnosc à vida ativa na Polônia, a derrota soviética no Afeganistão, a primeira eleição direta para o Parlamento Europeu, as manifestações de rua na Alemanha Oriental...
Ao se difundirem as notícias internacionais da surpreendente evolução dos acontecimentos em Berlim, parte da opinião pública começou a interessar-se pela nova situação. Não tanto os dirigentes, mas os acadêmicos e os jornalistas de opinião. Os indicadores revelavam um caminho sem volta, por recuo da União Soviética. Glasnost e perestroika passaram a integrar o vocabulário dos comentaristas para designar o renascimento de uma esperança de se resolver os impasses.
Esses grupos esclarecidos, sem descurar da política interna, passaram a prestar mais atenção ao que ocorria nas ‘repúblicas populares’, embora ainda sem saber ao certo como entender o que se passava. Pressentia-se, indistintamente, um vento de ‘virada do tempo’, de mudança epocal, cuja percepção pairava, imprecisa, no ar. Uma expectativa indefinida, uma esperança informe, uma ansiedade latente.
Às vésperas do primeiro turno das eleições presidenciais brasileiras de 1989, uma verdadeira eclosão de surpresa e de alegria: o muro caiu! Em pleno horário nobre, por causa da diferença de fuso horário, a televisão brasileira mostrou a multidão de berlinenses que atravessavam para o lado ocidental da cidade.
Uma sensação de receio de que isso não durasse e que a repressão reproduzisse algo parecido com o que acontecera em Beijing meses antes ainda pairou por algumas horas. Quando se constatou que não houve intervenção, de que não se corria o risco de uma reviravolta, os comentários explodiram: ganhou a liberdade, a democracia tarda mas não falha, a reconstrução é possível, um mundo novo pode ser o nosso amanhã.
O paralelo com a onda de redemocratização pela qual passava o Brasil foi imediato. A circunstância das vivências políticas em Berlim e no Brasil foi logo trazida à baila. A renúncia de Jânio Quadro em agosto de 1961 mergulhara o país num turbilhão de confusões, conflitos e confrontações políticas e ideológicas. Não se elevou um muro físico, mas o processo político desencadeado nesse momento conduziu inexoravelmente aos muros simbólicos que se instalaram em abril de 1964 e que somente começaram a cair em março de 1985. As duas últimas etapas da remoção do ‘entulho autoritário’ na vida brasileira foram a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88 e as eleições presidenciais de 1989.
Berlim, a Alemanha, o mundo, se livrava, em 1989, de um trauma maior iniciado em 1961, embora inserido numa lógica perversa de confrontação praticada desde 1945. Konrad Adenauer, chanceler alemão de 1949 a 1963, exclamara, ao promulgar a lei fundamental da Alemanha: esse é o dia mais feliz para os alemães, desde 1933. 9 de novembro de 1989 foi talvez o segundo dia mais feliz do século 20 para a Alemanha. O terceiro terá sido o dia 3 de outubro de 1990, quando os alemães separados pela linha da vergonha da fronteira intra-alemã afinal puderam reunir-se.
A sensação popular mais difundida no ambiente brasileiro, em novembro e dezembro de 1989, é de solidariedade e euforia, “somos todos berlinenses!” – algo inspirado pela exclamação de Kennedy, em 1961: “Ich bin ein Berliner!” – uma espécie de grito de alforria enfim alcançada. A satisfação pública e privada é generalizada. O mundo político e econômico saúda com entusiasmo o desmoronamento de um dos mais sofridos estigmas na história contemporânea.
A esperança teórica de quatro décadas subitamente se metamorfoseia numa esperança concreta, numa possibilidade real: a Alemanha poderá reencontrar-se, para se reinventar. A impressão que se tem é que a cura dessa chaga política e física no território alemão, europeu e internacional já chegava tarde, mesmo se de forma imprevista pelos políticos e pelos analistas. Junta-se a essa alegria uma outra: a mobilização sem precedentes na eleição presidencial brasileira. O país vivenciava, de outra forma, a superação de muros sociais e políticos que se haviam elevado entre os brasileiros desde 1964. Feliz coincidência, que se tenham esboroado tais obstáculos ao bom senso político, à prática social da democracia e à construção coletiva do bem estar.
A sequência dos acontecimentos a partir de 9 de novembro foi acompanhada com grande interesse. O caminho do reencontro alemão era visto como a via real para o reencontro do mundo. E da Europa, cuja redefinição era (e é) relevante tanto interna quanto internacionalmente. O Brasil percebeu rapidamente esse trunfo e abraçou com entusiasmo a causa alemã. Somente aos poucos se foi tomando consciência, entretanto, de que a tarefa para os alemães era ingente e custosa – tanto social quanto financeiramente. A atitude dos brasileiros permaneceu, porém, otimista e confiante: se os alemães conseguiram vencer tantos obstáculos desde 1945, hão também de superar os novos.
O ano de 1990 começou, assim, sob o signo de esperanças renovadas. De duras provações se tiraram belas lições. A opinião pública, regra geral, louvou a vitória da tolerância, da negociação, da paciência, da perseverança, da confiança. Pode-se dizer que esse aprendizado valeu tanto para o Brasil quanto para a Alemanha, desde então.